quinta-feira, 10 de abril de 2008

3 - O direito de não acabar um livro

"Há trinta e seis mil razões para abandonarmos um livro antes de o acabarmos:
1. o sentimento do "já lido",
2. uma história que não nos prende a atenção,
3. uma total desaprovação das teses do autor,
4. um estilo que nos eriça os cabelos,
5. ou pelo contrário uma ausência de qualidade que não justifica irmos mais além...
É inútil enumerarmos as outras 35995 razões, entre as quais se incluem uma carie dentária, as perseguições do nosso chefe de serviço ou um sismo do coração que nos petrifica a cabeça.
O livro cai-nos das mãos?
pois que caia.
Apesar de tudo, não é Montesquieu quem quer, nem todos conseguimos consolar-nos de um desgosto com uma hora e leitura.
No entanto, de entre as razões para abandonar uma leitura, há uma que merece um pouco de atenção: o vago sentimento de derrota. Abri, li, e de repente sinto-me submergido por qualquer coisa mais forte do que eu. Reuni os neurónios, lutei com o texto, mas não há nada a fazer, e se bem que tenha o sentimento de que o que está escrito merece ser lido, não percebo nada - ou quase nada - tenho uma sensação de "estranheza" que não me dá hipótese.
E abandono.
Ou melhor, pondo de lado. Arrumo o livro na estante com o vago projecto de a ele voltar um dia. O Petersburgo de Andrei Bielyi, Joyce e o seu Ulisses, Debaixo de um Vulcão de Malcon Lowry, esperam por mim vários anos. Há outros que ainda estão à minha espera, e desses provavelmente alguns continuarão para sempre à espera. Mas não é um drama, é assim mesmo. A noção "maturidade" é algo estranho em matéria de leitura. Que até certa idade não tenhamos idade para certas leituras, vá que não vá. Mas, ao contrário de alguns vinhos, os bons livros não envelhecem. Continuam à nossa espera nas estantes, e nós é que envelhecemos. Quando nos julgamos suficientemente "maduros" para os lermos, novamente nos dedicamos a eles. E então, das duas uma: ou há encontro feliz, ou um novo fiasco. Talvez voltemos a tentar, talvez não. Mas se até agora não consegui atingir o cimo da Montanha Mágica, certamente que a culpa não é de Thomas Mann.
O grande romance que nos resiste, não é necessariamente mais dificil do que qualquer outro do que qualquer outro... há entre ele - por maior que seja - e nós por mais aptos que estejamos a "compreendê-lo" - uma reacção química que não resulta. Um dia simpatizamos com a obra de Borges, que até ali nos tínhamos mantido à distância, mas mantemo-nos toda a vida afastados da obra de Musil...
Temos, então, uma opção: ou consideramos que a culpa é nossa, que nos "falta um parafuso", que temos uma falha qualquer, ou vasculhamos a noção tão controversa de gosto e procuramos traçar o mapa dos nossos.
É prudente recomendar aos nossos filhos esta segunda solução.
Tanto mais que pode proporcionar-nos um raro prazer: reler, compreendendo finalmente por que razão não gostamos. E ainda outro raro prazer: ouvir sem emoção o pedante de serviço bradar-nos aos ouvidos:
- Mas será possível que não goste de Stendhaaaaal?
É."

mais uma vez.... in "como um Romance" de Daniel Pennac

Um comentário:

Anônimo disse...

Reclamo esse direito e muitas vezes cometo essa "ilegalidade". Sinto o mesmo, como no relacionamento com outros seres humenos. É química, sim. Se não há, não acontece a entrega. Muito bom, formiguinha :-)